Se ninguém tá vendo, tudo é permitido

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015 Postado por Lindiberg de Oliveira
Uma pesquisa feita entre os ganhadores dos jogos olímpicos revela que 92% dos entrevistados assumiram que se tivessem a oportunidade de usar uma droga que passasse despercebida no antidoping, ainda que tivesse como consequência a diminuição de 15 anos de suas vidas, eles usariam tranquilamente.
Bem, esse tipo de informação de forma alguma nos espanta, e é justamente a incapacidade de sobressalto que manifesta um esvaziamento total do que se entende por virtude. A atitude desses atletas reflete algo intrigante: não existem mais heróis. O conceito de justiça platônica, como a busca pela ordem da alma, foi suplantado pela retórica sofistica de que além de ser vantajoso ser desonesto, nisto também consiste o bem.
Ninguém precisa ser bom de verdade. Já não há mais resistência em nossa alma à sociedade corrupta que nos cerca. Virtude se tornou apenas mais um produto, um slogan, uma palavra que você coloca junto de alguma outra coisa pra ficar mais digestivo, mas, no final das contas, isso não tem sentido algum. Já não é mais possível internalizar o sentido de virtude aristotélica, como sabedoria prática (virtude intelectual) ou a liberalidade e temperança (virtudes morais). Vivemos numa época diferente, onde o vício se tornou coisa chique; onde liberdade de consciência e liberdade de ação virou uma deus-nos-acuda e, ao mesmo tempo, uma arma nas mãos dos abomináveis.
A política, onde as consequências são mais desastrosas, transformou-se em um ambiente onde a honestidade é algo irrealizável – o discurso de mudança não passa disso: discurso. O jogo político sempre foi apreciado como um bolo delicioso, mas, no entanto, incomestível para aqueles que querem preservar sua alma. É impossível uma política transparente, é insuportável. Se o véu for rasgado todos vomitam, pois irão perceber que Mensalão é coisa de amadores. Dizer que existe uma consciência política soa tão racional quanto eu dizer que a cor amarela pesa cinco quilos. A única racionalidade possível na política é a de Maquiavel, que continua sendo o filósofo da política mais sério até hoje: a razão da política é a conquista e manutenção do poder a qualquer custo.
Mas não é só na política ou no esporte que virtude se tornou mera maquiagem; o engano, a fraude e as tramoias cruzam todos os recintos da vida e, o pior de tudo, é que não é mais possível se escandalizar com isso. Vivemos o drama da falta de caráter em nossa sociedade, onde todos são máscaras ou meras representações.
Institucionalizamos a hipocrisia, e o aplicativo Secret (um tipo de rede social onde todos são anônimos, e por esse caráter, segredos e mentiras são espalhados pela rede) é a maior prova disso, esfregando em nossa cara que a amizade (philia) é quase uma total impossibilidade em nossos dias. A philia pressupõe lealdade, e sem lealdade não existem alianças, não existem laços afetivos com outras pessoas a fim de dar unidade e sentido à própria miséria da existência, que é profundamente solitária. Para Voegelin, philia é a substância fundamental de todas as relações humanas, o vínculo de sentimento, que varia em aspecto, intensidade, e que cria a comunidade no caso concreto.
Por fim, apelar para Deus já não está mais dando certo, pois Deus a cada dia se torna uma mera expressão abstrata, um adesivo no para-brisa de um carro. O Eterno já não é mais uma referência nem mesmo para os crentes, que muitas vezes, aplacados pelas barganhas da religião, abrem um novo mercado para suas mentiras. “Expressões abstratas” (Deus) não podem penitenciar ninguém, e se ninguém tá vendo, tudo é permitido.